Às vezes, parece
que a ficha não caiu, como a própria adolescente costuma dizer. Ela reclama da
falta do celular desaparecido, liga para a avó pedindo um novo. Balança as
pernas com rapidez quando é contrariada. Faz um muxoxo. Nesses momentos, parece
apenas mais uma jovem que teve um aparelho furtado. Só parece. A irritação é
apenas um sintoma brando de uma dor aguda. Tão forte, que ela ainda não
consegue assimilar. O celular que ela tanto quer de volta sumiu no mesmo dia em
que o sorriso, tão comum nas selfies que costumava postar. Foram 33, ela
calculou, enquanto estava deitada numa cama nua e dopada, os homens que se
revezaram para violentá-la até que ela sangrasse. A violência continua — agora,
a menina, embora venha recebendo muito apoio, também enfrenta comentários
maldosos nas redes sociais:
— Me sinto um lixo. Parece que quando as pessoas me
olham veem um lixo na frente, mesmo com todo o apoio que estou recebendo. O
estigma é o que está me doendo mais. É como se dissessem 'a culpa é dela. Foi
ela que estava usando roupa curta. Foi ela que quis ir para lá’. Eu vi isso no
Facebook. Eu queria que as pessoas soubessem que não é culpa da mulher. Não tem
como alguém culpar uma vítima de roubo, por exemplo — afirmou a jovem, séria. —
Nesse momento em que eu estou falando, deve ter uma mulher sendo estuprada ou
morta em algum lugar.
— Me sentia
totalmente indefesa. Eu pensava em sair dali. Achava que ia morrer. Achei que
eles iam me enforcar. Até arma eles usaram. Quero a justiça de Deus para essas
pessoas — disse.
MEDO DE SER RESPONSABILIZADA
Sobreviver, entretanto, foi apenas o primeiro dos degraus. Depois
do estupro, veio o medo de ser responsabilizada pelo que aconteceu. O alento
para a jovem, entretanto, tem vindo de todas as partes do mundo e do país,
mediado pelas redes sociais. Viu que muitas mulheres que ela nunca conheceu
mostraram seu apoio. E elas reforçaram: a culpa nunca é da vítima, e sim do
agressor.
— Eu queria agradecer a essas pessoas, porque eu não esperava. Eu
pensei que eu seria realmente julgada. Pensei que eu seria apedrejada. A
maioria delas (das mulheres) diz: ‘tô contigo’ — diz, abrindo, finalmente, um
sorriso.
Ela agradeceu o apoio nas redes sociais: “ Todas podemos um dia
passar por isso. Não, não dói o útero e sim a alma por existirem pessoas cruéis
impunes !! Obrigada pelo apoio", postou.
Em muitos momentos, seus pais parecem mais cientes da gravidade do
que ocorreu do que a própria jovem. O pai, de 70 anos, chora com facilidade.
Com a ajuda de muletas, tem dificuldade para se locomover, depois de sofrer
dois AVCs. A menina temeu pela saúde dele quando o vídeo em que estupradores
zombam da vítima chegou ao conhecimento da família. A primeira a receber foi a
avó da menina.
— O que fizeram
com a minha filha foi horrível. Ninguém espera criar uma menina para um dia
acontecer isso — emocionou-se.
No dia seguinte ao estupro, ela chegou em casa, em um condomínio
de um bairro de classe média da Zona Oeste do Rio, vestindo roupas de homem, de
um amigo que a ajudou, ainda dopada, a sair da favela onde o crime ocorrera. Já
em casa, entrou no chuveiro e limpou o sangue que ainda corria. E depois foi
dormir. Decidiu não contar o que tinha sofrido para ninguém. Se não fosse pelo
vídeo divulgado, o segredo estaria guardado até hoje:
— Quando apareceu na internet (as imagens), eu estava em casa. Aí,
a advogada me chamou para ir na delegacia e no IML. Ela disse que estava de
carro aqui embaixo. Tomei banho, botei a roupa e desci. Se não fosse por ela
até hoje acho que não faria nada.
‘PODERIA TER SIDO PIOR’, DIZ MÃE DA VÍTIMA
Já a mãe, uma pedagoga de 46 anos, diz que está “mais ou menos”.
Com muito medo, ela teme andar na rua, com ou sem a filha. Ela é avó e uma
espécie de mãe pro menino de três anos que a filha deu à luz aos 13 anos. O pai
dele, morador de uma comunidade da Zona Norte e quatro anos mais velho que a
garota, nunca quis registrar o menino. Era ligado ao tráfico e morreu baleado
no ano passado durante um confronto. Agora, além de dar colo ao neto, a
pedagoga dá também à filha, junto de uma frase de consolo:
— Poderia ter sido pior.
As poucas saídas da jovem têm sido para ir ao hospital ou à
delegacia. Ontem à tarde, foi dia de novo depoimento na Delegacia de Repressão
aos Crimes de Informática (DRCI), que investiga o caso. A menina foi ao quarto
trocar de roupa, voltou para a sala vestida com blusa e saião. No almoço
apressado, antes que o carro de polícia chegasse, chegou à sala de estar, com
passinhos miúdos, seu filho de 3 anos, ainda sonolento. A adolescente colocou o
pequeno no colo, perguntou se ele queria umas garfadas de arroz com feijão. Ele
não respondeu, e dormiu nos seus braços.
Mais quieto que o usual, segundo os pais da moça, o menino
demonstra sentir, na sua intuição infantil, que algo afetou a casa.
FAMÍLIA PENSA EM DEIXAR O RIO
Desde o crime, a já difícil rotina da casa mudou. Jornalistas não
param de ligar — enquanto a reportagem do GLOBO esteve no local, foram três
telefonemas. Anteontem, um grupo de amigas foi visitar a garota. Para ver a
menina pessoalmente, por enquanto, só visitando. A casa, num condomínio com
academia e área de lazer que deveria ser um “lar” para a família desde que se
mudaram, há três anos, tornou-se nos últimos dias uma espécie de esconderijo.
A jovem, que já não ia à escola pública em que estuda desde o início
do ano, agora nem pensa em sair de casa, por medo. Também não sabe ao certo
como quer que seja seu futuro. Quer casar, ter mais filhos. Se depender dos
pais, no entanto, o recomeço será longe. Eles querem sair da cidade e evitar
que a jovem lembre a todo momento do que enfrentou. Ainda não escolheram o
destino. Por enquanto, na matemática da dor, a certeza é que trinta e três
homens, incitados pelo machismo, foram capazes de, ao violentar o corpo de uma
adolescente, dilacerar a vida dela e de mais três pessoas.
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