Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil.
Os recursos bilionários do Sistema S entraram na mira da
procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela cobra transparência no
uso do dinheiro público repassado às entidades.
O
Sistema S é formado por nove organizações, entre elas Sesi, Sesc e
Sebrae. Fundadas a partir dos anos 1940, elas prestam serviços de
educação, cultura e treinamento de mão de obra.
No
foco da PGR estão recursos de contribuições obrigatórias sobre folha de
pagamento instituídas por leis federais. Em 2018, a Receita repassou às
entidades R$ 17,1 bilhões.
O ministro Paulo
Guedes (Economia) já disse que é preciso "meter a faca" no Sistema S. Em
maio, decreto do presidente Jair Bolsonaro enquadrou as organizações na
LAI (Lei de Acesso à Informação). A norma entrou em vigor no início
deste mês.
Ao STF (Supremo Tribunal Federal),
Dodge defendeu que fiquem na Justiça Federal eventuais casos de desvios
de recursos no Sistema S. A manifestação é de 7 de agosto.
Com
a recomendação de Dodge, o MPF (Ministério Público Federal) passaria a
investigar crimes nas organizações. Hoje, Justiça comum e MPs estaduais
tratam desses casos.
Uma ação da CNT
(Confederação Nacional do Transporte), ajuizada em abril de 2016, pede
que os casos criminais sejam julgados na Justiça Federal. O STF ainda
não decidiu sobre a ação.
"Tratando-se de
recurso proveniente de tributo federal, o produto decorrente da
arrecadação de contribuição possui natureza de recurso público federal, o
que impõe a observância dos princípios da moralidade, eficiência,
economicidade, impessoalidade e publicidade", escreveu Dodge.A
procuradora-geral destacou que, embora esses princípios estejam na
Constituição de 1988, só em 2016 o TCU (Tribunal de Contas da União)
impôs ao Sistema S normas contábeis do setor público, após uma
auditoria.
A procuradora-geral propôs a revisão
do entendimento do STF sobre a competência da Justiça comum. A atual
jurisprudência é dos anos 1960, anterior à Constituição. Há divergências
sobre o tema.
"Deve prevalecer a orientação
jurisprudencial que fixa, como regra, a competência da Justiça Federal
para processar e julgar delitos relacionados ao desvio ou à apropriação
de verbas em detrimento dos serviços sociais autônomos [Sistema S]",
afirmou.
Essa não é a primeira investida de
Dodge sobre as entidades neste ano. Em fevereiro, em parecer e despacho,
ela colocou o acompanhamento dos recursos como uma prioridade.
A
cruzada da PGR começou com uma manifestação chamada notícia de fato,
apresentada pelo então senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO). Ele presidiu a
Comissão de Transparência do Senado.
Oliveira
foi até a PGR para pedir investigações sobre as prestações de contas das
entidades após a auditoria do TCU. A fiscalização foi realizada sobre
recursos de 2015 e 2016.
Em parecer de 4 de
fevereiro, Dodge afirmou que "é a primeira vez que o TCU faz um
levantamento global e sistemático" das entidades.
Segundo
ela, o levantamento "demonstrou o absoluto desconhecimento e
acompanhamento por parte dos órgãos de controle do Estado, ao longo dos
anos, sobre a forma de arrecadação e aplicação desses vultosos valores".
A auditoria apontou que, em 2015, o orçamento total do Sistema S foi de R$ 34,9 bilhões e, em 2016, de R$ 32,2 bilhões.
Desse
total, no primeiro ano analisado, 62,06% (R$ 22 bilhões) tiveram origem
em tributos. No segundo ano, foram 65,73% (R$ 21,2 bilhões).
Só
em imóveis são R$ 23 bilhões. "Parte considerável desse patrimônio está
sendo usada para atividades não relacionadas às atribuições das
entidades", escreveu Dodge.
Ela destacou ainda
dúvidas apontadas na auditoria do TCU sobre dispensa de licitação e
divergências entre valores de despesas e valores de contratos.
Embora
as entidades sejam regidas pelo direito privado, a procuradora-geral
defendeu maior controle sobre elas por os recursos públicos serem
federais e de interesse da União.
Na ocasião,
Dodge afirmou que não há "informações suficientes para fundamentar a
deflagração de providências apuratórias na esfera criminal" na PGR.
Porém,
segundo ela, "é certo que as situações retratadas, pela magnitude dos
valores envolvidos na arrecadação desse tributo, pela natureza pública
do recurso e pela finalidade essencialmente pública na sua aplicação,
demandam uma atuação coordenada entre o MPF e o TCU".
A procuradora-geral acionou câmaras especializadas da PGR, entre elas a de combate à corrupção, para tomar providências.
No
dia 7 de fevereiro, Dodge então enviou o despacho ao ministro do TCU
Augusto Sherman Cavalcanti, relator da auditoria na corte.
Nele,
afirmou que "a natureza privada das entidades beneficiárias destes
recursos não obsta a incidência das regras constitucionais e legais de
controle orçamentário e financeiro, sob pena de a sociedade não ter o
devido esclarecimento e o acompanhamento da gestão de recursos".
Dodge
informou ao ministro que as câmaras da PGR deverão adotar "as
providências cabíveis em suas respectivas esferas de atribuição".
O mandato de dois anos da procuradora-geral termina em setembro. Ela pode ser reconduzida ao cargo.
O
presidente Jair Bolsonaro ainda não anunciou o nome do próximo
procurador-geral. A indicação depende de aprovação do Senado após
sabatina.
Confederações afirmam que são transparentes
Procuradas
pela reportagem, as confederações do Comércio, da Indústria, dos
Transportes e das Cooperativas afirmaram que mantêm seções voltadas à
transparência em seus sites.
A CNT é a única a defender que a competência para julgamento de questões referentes ao sistema S seja da Justiça Federal.
Em
nota, a entidade disse que "também não se opõe a nenhuma investigação
que, porventura, queira fazer o MPF. Pelo contrário, adota postura
colaborativa, embora repudie a insinuação de que crimes sejam lugar
comum na entidade."
A CNC, por outro lado,
entende que o STF "pacificou o entendimento de que os recursos
destinados às entidades de serviços sociais autônomos vinculados ao
sistema sindical, caso do Sesc/Senac, quando ingressam em seus cofres,
assumem natureza de patrimônio privado, não se confundindo com a
administração pública."
Para a entidade, a
corte "também já fixou o entendimento de que essas entidades possuem
patrimônio e receitas próprias, que (...) não integram o patrimônio
público" e, por isso, "o único órgão com competência constitucional para
exercer o controle finalístico de suas atividades seria o Tribunal de
Contas da União".
Segundo a CNC, o decreto de
Bolsonaro, que regulamentou a Lei de Acesso à Informação, "incluiu, de
forma equivocada, as entidades do chamado Sistema S em seu escopo, pois a
lei (...) se aplica a órgãos públicos e entidades controladas pelo
poder público, o que não guarda qualquer relação com o Sesc e o Senac."
"Por conta disso, a questão foi submetida à apreciação do Poder Judiciário em ação própria", disse a confederação em nota.
"As
informações e os dados tanto do Sesc quanto do Senac são objeto de
fiscalização regular e disponibilizados para apreciação dos órgãos
competentes (...), além de estarem sujeitos a rigorosos controles
internos dos Conselhos Fiscais e auditorias."
Na
mesma linha, a CNI defende que a "jurisprudência pacífica (...)
estabelece que os serviços sociais autônomos estão sujeitos à Justiça
comum e não à Justiça Federal. Caso o STF decida rever o seu
posicionamento, isto será indiferente".
A
entidade também diz que "não está sujeita ao Decreto 9.781/2019 nem à
Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Quanto ao Sesi e ao Senai,
os seus sites da transparência atendem às normas que lhe são
pertinentes".
Para a confederação, os sites das duas entidades atendem ao espírito e ao objetivo do decreto e da LAI.
Dois
advogados da entidade se reuniram em 25 de julho com o ministro
Raimundo Carreiro, do TCU, para falar sobre o processo que tramita no
tribunal sobre os recursos do sistema S. A CNI diz que no encontro foram
tratados "assuntos jurídicos de interesse" do Sesi e do Senai
referentes ao processo.
Para o TCU, "faz parte
da rotina dos ministros do tribunal receber as partes interessadas nos
processos para ouvir suas considerações, como ocorrido na reunião". O
processo está nas mãos do relator, o ministro Bruno Dantas, que tem o
poder de colocá-lo na pauta do tribunal.
O
Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) afirma que
seus recursos se dividem em 80% para atividade finalística (como cursos
de formação e atividades de monitoramento de cooperativas) e 20% para
administração, controladoria e auditoria.
"Somos seguros em dizer que a atuação do Sescoop (...) se faz com transparência".
A CNA não respondeu aos questionamentos da reportagem.
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